12 de jun. de 2017

O Jornal da minha cidade


Era uma vez uma cidade que possuía só um jornal. Este era impresso em um porão por algumas pessoas de espírito jovem. Sonhavam que seus sonhos traduzidos em palavras pudessem ser apropriados por outras pessoas.
Os leitores se informavam e se emocionavam com aquelas publicações. Sentiam-se confortadas com as histórias, com os depoimentos e se espelhavam na força daqueles que construíam a cidade. Os exemplos de fé estimulavam novos empreendimentos.
Homens e mulheres emergiam das páginas e movimentavam sentimentos e corações. As notícias e as fotos do dia anterior faziam reviver a felicidade do ontem ou reconfortar corações partidos e despedidas inevitáveis.
A impressão passou do porão para a sala, para a cozinha e ocupou a casa inteira. Como uma ideia que se apodera de todos os cantos da memória. Uma obsessão feliz de comunicar, tal como uma veia a irrigar os órgãos e manter o coração batendo.
A cidade cresceu. Outros tempos. Novas pessoas, novas políticas e novos jornais criaram novas necessidades. A convergência das vontades tornou-se concorrência. O mercado se sobrepôs a concordância das frases e da razão.
Não havia mais jornais, mas diversos concorrentes que disputavam os leitores, que se transformaram em clientes. Não havia mais família, mas unidades de consumo. As identidades se multiplicaram e não mais cabiam em um só jornal.
A história dos acontecimentos cedeu lugar a notícia descartável no dia seguinte. A novidade sobrepunha a narração e o fio da memória se perdia como um boato. Apenas uma denúncia vazia, uma insinuação política descabida, uma notícia deselegante.
As pessoas passaram a se esquecer dos fatos ocorridos anteriormente. A linguagem foi empobrecendo e as pessoas foram se fechando em um gueto de palavras, caminho certo para um gueto da vida.
Os recursos públicos passaram a afiançar a vitória política e subornar as consciências. O conhecimento deu lugar a uma nova informação que desinforma. O esclarecimento deu lugar ao curral eleitoral.
O jornal voltou ao porão e o sonho a disputar lugar com a poeira do tempo. Gerações se passaram e o velho linotipo já não encantava mais. As pessoas, uma vez ou outra, perguntavam pelo jornal, mas ele rendia-se em um canto silencioso.
Um dia apareceu um jovem curioso que desceu ao porão e, com os tipos disponíveis, gravou seu nome, uma frase e depois um parágrafo. Encantado chamou outros jovens que, então, levaram a máquina para a sala.

Edélcio Vigna, doutor em Ciências Sociais/UnB
edelcio.evo@gmail.com
(Publicado na Folha de Ourinhos)

Experiência da verdade


Tudo se esforça para ser verdade, mas o véu acaba caindo e a máscara da mentira se expõe irremediavelmente. Aparentemente o país está saindo da crise, mas a recessão se aprofunda. Os números que são apresentados pelos mais credenciados institutos não passam de grossas falsificações. São como propaganda de remédios.
Quando se devia seguir a lei do coração, se curva à lei do fígado e a da genitália. A lei de Gerson “levar vantagem em tudo”, dos anos 70, voltou a vigorar com toda força. A humanidade retorna ao ciclo de conquistas e brutalidades. Basta ligar a TV e se enojar de tantas cenas de crueldade. É como rever as cenas do filme “laranja mecânica”.
A revolução das comunicações trouxe a parte pior do real para a sala de visitas. Se pensava que as cenas melhorariam a sensibilidade em relação ao outro e reforçariam o sentimento altruísta, erramos. As notícias estão embrutecendo o espírito e naturalizando a violência e a corrupção.
Os políticos se empenham em representar o eleitor, mas sempre há cartazes dizendo “ele não me representa”. A honestidade pública está no auge do descrédito. Desde o caixa-2 Dilma-Temer ao bom-mocismo do PSDB, enchafurdados na lava-jato.
A economia pública é saqueada enquanto alguns se batem em torno de nomes, que não levam a nenhum lugar que não seja conhecido. As instituições públicas estão paralisadas devido ao confronto de interesses particulares, que nada tem a ver com o bem estar da população. Saquear a República é a palavra de ordem. Ao povo: TV e promessas.
Nossas vidas estão sendo contaminadas pelo vírus da cretinice e da insensibilidade. Mente-se hoje muito mais do que ontem. Engana-se com um despudoramento de causar vergonha ao despudor. Os sorrisos são apenas contrações labiais sobre uma cara de pau.
O exercício cotidiano do ser é ser verdadeiro.  Mas, qual é o parâmetro da verdade? A “verdade” não está apenas em oposição ao “falso”. Verdade é uma palavra polissêmica, que é construída historicamente e é uma experiência vivenciada. Muitos foram e são os seus sentidos. Dentre esses está se escolhendo o mais repugnante. Será isso insanidade coletiva?
Efeito rebanho pode ser um fator, mas até quando o indivíduo vai se acomodar e ser apenas boi de rabeira? O tempo é relativo e o humano não é nada diante o tempo do mundo e menos que poeira em relação ao tempo do universo. Tudo pode ser recriado, reinventado e revisado, até mesmo nossas vidas.

*Edélcio Vigna, Doutor em Ciências Sociais/UnB
edelcio.evo@gmail.com
(Publicado na Folha de Ourinhos)